terça-feira, 31 de outubro de 2017

O CACHORRO

Essa história aconteceu de verdade com um vigilante noturno da UFFS.
            Entre 2010 e 2012, as aulas da universidade aconteceram no Centro de Eventos de Realeza, um espaço onde originalmente funcionava uma indústria, chamada “Parquet BW Itaipu”, e que teve de passar por várias adaptações para comportar salas de aula dentro dos galpões. Levantaram-se paredes, mas o que chamava a atenção era a enorme torre de tijolos, de mais de com a porta sempre trancada.
            Durante as madrugadas, muitos vigilantes afirmam terem ouvido gemidos e barulhos vindos do alto da torre. Alguns davam uma risada nervosa, afirmando ser o fantasma do velho Caselani, que ficou louco e agora rondava o Centro de Eventos. Mas um deles, beirando os quarenta anos pediu para que não brincassem com as mortes ocorridas ali, à época da fábrica, porque seu avô tinha sido uma vítima, em um acidente estranho.
            Foi em novembro de 1983, com a fábrica celebrando 10 anos de funcionamento. Seu avô era muito forte, segurando ripas de madeira que outros operários só conseguiam carregar com muita ajuda e esforço. Ele tinha um cão muito fiel, de porte médio, com grossos pelos cinzas, que o acompanhava durante todo o trajeto da casa, durante o trabalho ficava pelos arredores e voltava como sombra dele, no final do dia.
            Pois foi em um final de tarde, com o céu oscilando entre o rosa e o azul, que, do alto da torre, quatro tijolos despencaram: três acertaram fatalmente a cabeça e os braços de seu avô e um a perna dianteira do cachorro. Trouxeram o homem para dentro, mas os ferimentos eram muito sérios, uma poça de sangue começava a se formar no pátio da fábrica. O cachorro também foi recolhido e gania com grande tristeza, parecia que mais por ver o dono naquele estado do que pelo seu próprio machucado.
            Disseram que foi uma fatalidade, pois ninguém conseguiria jogar aqueles tijolos e desaparecer. O homem morreu alguns dias depois. O cachorro, por não ficar parado e sempre andar à procura do dono, fez com que a fratura não cicatrizasse direito, de modo que ficou manco definitivamente. O que não era um problema, pois tinha grande disposição, continuava andando por toda parte e, às vezes, olhava para um ou para outro funcionário da fábrica, com grandes olhos tristes, e ganindo tal qual um resmungo, como se perguntasse pelo dono.
            Tempos depois, a fábrica faliu. E o cachorro, em um dia que ninguém mais sabia dizer qual, desapareceu. E agora, quase trinta anos depois, o neto daquele homem era vigilante, no mesmo lugar da morte do avô... Por isso, brincadeiras não, por respeito!
            Alguns dias depois de contar a história da morte do avô, o vigilante estava fazendo a ronda noturna. Quando abriu a porta de metal do saguão central (que estava funcionando como Auditório), a luz da lanterna iluminou, logo ali, diante dele, uma grande poça de sangue. E, em algum lugar, um uivo ecoou, cortando o ar frio.
            Correu para chamar alguém, sem conseguir organizar as palavras: “Venham, venham”. Quando voltaram ali, acenderam as luzes todas, e verificaram que, ao invés de sangue, seria, possivelmente, apenas uma mancha de óleo. O vigilante respirou aliviado, mas ainda sentia-se incomodado.
            No dia seguinte, alguns alunos de Veterinária trouxeram um cachorro. “Acho que sofreu um acidente aqui por perto”. O vigilante, que já se aprontava para encerrar seu turno, ficou estático diante do cachorro que estava no colo de um rapaz: tinha os mesmos olhos tristes, os mesmos pelos grossos e a mesma pata quebrada do cachorro de seu avô.
            Durante todo o caminho, ficou pensando se seria possível um cachorro que desapareceu trinta anos antes, ressurgir da mesma forma, e com as mesmas características.
O vigilante nunca contou essa história a ninguém, pois sabia que não acreditariam nele. Mas aproveitou a oportunidade para conviver com aquele cachorro, dando-lhe carinho e atenção, pois era uma forma de conectar-se com seu avô. Enfim, essa é uma daquelas coisas que não se explicam nem se entendem. Apenas se vivem e se sentem.
           
            Essa história aconteceu de verdade com um vigilante noturno da UFFS.
            Quando houve a mudança para o prédio definitivo, o vigilante pegou o cachorro e o trouxe a tiracolo para o novo campus. Não seria possível se separar dele, sendo uma lembrança, mesmo que absurda, do avô. E o cachorro ainda anda pela UFFS, em companhia dos outros cães, mas sempre parecendo andar à procura de alguma coisa ou alguém. Às vezes, quando lhe dão atenção, ele vem a passos mancos e lança um olhar baixo e triste, enquanto solta um resmungo.

ALUNA EXEMPLAR

Essa história aconteceu de verdade com uma acadêmica de Letras da UFFS.
            Aquela moça, desde criança, tinha o sonho de ser professora. Os pais eram professores, uma irmã mais velha estava num curso de licenciatura, enfim, o ato de transmitir e mediar conhecimentos sempre fez parte de sua vida. Aliás, muitas vezes, a mãe espiava, pela fresta da porta, a menina inventando lições ou contando uma história, como se conversasse com alguém. E se perguntava: “Para quem você está dando aula?”, a menina prontamente respondia: “Para minha amiguinha”.
            E, à medida que os anos passavam, essa vontade de ser professora foi se desenvolvendo, de modo que, quando entrou na universidade, o curso de Letras foi a escolha, pois poderia continuar desvendando histórias e costurando textos. Não havia mais tempo para brincadeiras e inventar aulas de mentira, agora já imaginava as suas futuras turmas. Dessa vez, reais.
            Mas alguma coisa parecia estranha. Desde as suas primeiras apresentações de trabalhos, bastava ela começar a falar para os demais colegas, e até mesmo o professor, sentirem uma sonolência, um torpor, quase não conseguindo manter os olhos abertos. “Será que minha voz é tão chata assim?”, queixava-se a moça, pensando que talvez o sonho de ser professora devesse ficar somente como um sonho.
            A situação se agravou quando, no terceiro ano da graduação, ela iniciou os Estágios. E, numa atividade no laboratório 105, em que uma turma de Ensino Médio visitou a UFFS, com a moça como regente da aula, uma aluna, pálida como se tivesse o sangue drenado, levantou a mão: “Não estou me sentindo bem”. E desmaiou. Outros dois alunos também desmaiaram. Um convulsionou. A professora supervisora, com certa dificuldade, chamou uma ambulância para o atendimento de emergência, mas logo que todos saíram para a área externa, respirando profundamente, o mal-estar passou.
            A moça, então, queria desistir do curso. Se os seus alunos sempre sofreriam em suas aulas, ela sofreria mais ainda. Porém, antes de abandonar, sugeriram que ela conversasse com a equipe pedagógica. A assistente social da UFFS, então, pediu que a moça contasse um pouco sobre como era a sua rotina e a sua história de vida, tentando identificar alguma situação adversa. E ela contou sobre seu sonho, sobre como, quando era pequena, até criara uma amiga imaginária para ser a sua aluna...
            Com isso, a assistente social propôs um teste à moça, antes de ela desistir do curso definitivamente: que fizesse a aula, em um primeiro momento, sozinha, em uma sala vazia; e só depois repetisse com os alunos no estágio ou para os colegas. A moça tentou e, com muita surpresa, não percebeu ninguém desmaiando ou dormindo.
            Mais tarde, como uma tentativa de explicação, a assistente social deduziu que a amiga imaginária de infância permaneceu com a moça, sempre esperando mais aulas. Como elas só vieram quando ela começou a graduação, a amiga possivelmente ficou com ciúme por ter de dividir a aula com outras pessoas e tentava tirar-lhes a atenção. Por isso os alunos sentiam cansaço e sonolência. A solução seria, então, acalmar a amiga dando-lhe aulas particulares...

            Essa história aconteceu de verdade com uma acadêmica de Letras da UFFS.

            Que, na verdade, não é a única, pois muitos outros acadêmicos, de todos os cursos, também tiveram amigos imaginários e brincavam, quando pequenos, de dar aulas a eles. Então, por vezes, em algumas salas de aula, acadêmicos estão fazendo apresentações diante das cadeiras vazias. Nesses casos, é favor não incomodar, pois alguns amigos imaginários são muito possessivos.

OCCIDERE EOS

Essa história aconteceu de verdade com uma acadêmica da UFFS. Ninguém sabe ao certo o que ocorreu. As mortes permanecem um mistério, obscuras e sem sentido para aqueles que apenas serviram de espectadores do fato.
Era o primeiro dia de aula, os acadêmicos andavam e entravam nas salas, iam à cantina, conversavam e sorriam. Dentre os “calouros”, uma moça dócil, meiga, tímida, com seus cabelos cor de mel, olhos miúdos e sorriso metalizado. Mas era feia. Parecia pagar pelos pecados dos seus pais, mesmo não tendo cometido os seus próprios.
Ao adentrar pela primeira vez a sala de aula, deparou-se com um homem alto, moreno, de olhos castanhos e sorriso largo. Do encontro, o resultado foram cadernos ao chão e risos de um grupo que observava a cena a distância. O rapaz não lhe deu atenção, apenas desculpou-se apressadamente e saiu. Alguns a olharam com pena, outros nem isso. Ninguém lhe ajudou. Devido ao seu problema de coluna, teve de se contorcer para poder alcançar os seus cadernos, apoiando-se na parede. Respirava com dificuldade quando se sentou na cadeira da primeira fila. O esforço a fez corar e ainda mais a vergonha de ouvir, meio escondido, risadas que se tentavam disfarçar.
Os risos penetravam em seus tímpanos como agulhas a lhe furarem a fina membrana, quase sangravam, como em um perpétuo e contínuo castigo a arrancar-lhe um pedaço do corpo. Assim foi, dia após dia. E os risos pareciam o som do bater do bico de um corvo numa vidraça, seu coração endurecia, seus olhos ardiam, vermelhos. Volta e meia, mesmo quando sozinha, ouvia risos abafados e olhares desdenhosos. Sentia por si mesma um ódio mortal. Não podia crer que aquela tortura que havia passado por anos no ensino médio se repetiria.
No quarto que alugara não havia espelhos, encarar-se parecia alimentar ainda mais o desprezo por si mesma. Sempre que caminhava com dificuldade, olhava através dos óculos fundo-de-garrafa que lhe pesavam sobre o fino nariz. Os risos não cessavam e seus ouvidos doíam cada vez mais, ao passo que sua coluna se dobrava como um caracol, suas costas a faziam curvar-se e sangrava. Não sabia onde, mas sangrava.
Ir para a universidade tornou-se um calvário, mas ficar em seu quarto, sozinha parecia pior. Todos os dias, fazia o mesmo caminho para casa e o fazia a pé, pois não tinha coragem de ir no ônibus que levava os estudantes. Durante o trajeto, recebia risos imaginários como companhia, vindos da angústia, da raiva por ser feia, da raiva que crescia em seu coração e em sua mente.
Ao chegar em seu quarto, as paredes pareciam movimentar-se e cada vez mais se sentia sufocar. A brancura das paredes a sufocavam e começou a ouvir vozes, cada vez mais insistentes, que, pelo menos, silenciavam os risos dos outros. Noite adentro, permanecia sentada em sua cama, a murmurar uma frase numa língua estranha, mas repetida incessantemente por aquelas vozes: Occidere eos! Occidere eos! Descobriu que era latim, em uma aula, quando viu um texto sobre uma espécie de planta e o professor leu o nome em voz alta.
Já era meados de julho, fazia frio, chovia e o uivo vindo das janelas denunciava que, fora daquelas paredes, ventava. Alguns acadêmicos ficaram de recuperação: sete pessoas. Dentre os que ali estavam, a pobre moça, mas nem ao menos entendia o que estava fazendo, pois há muito tempo que não prestava mais atenção nas aulas. Os outros seis eram justamente aqueles que riam de tudo, inclusive as risadas abafadas que ela ouvia durante o semestre.
O professor entrou na sala, mas logo precisou sair, pois foi chamado por outro aluno no corredor. Quando voltou, encontrou os alunos rindo, ela em silêncio, mas não estranhou, pois, aquela moça sempre se mostrava tímida e centrada. Lembrou-se que, naquela idade, ele também era do grupo dos quietos, tranquilos e envergonhados. Começou a falar de como tinha organizado a prova e entregou-a aos alunos. No entanto, percebeu que uma das questões não estava legível. Provavelmente, por não ter trocado o tonner da impressora por um novo. Então, começou a transcrevê-la no quadro branco. Ela estava sentada, sozinha e não ouvia mais a fala do professor, não conseguia erguer o olhar, seu cérebro parecia querer arrebentar-lhe o crânio e explodir, manchando de vermelho aquelas paredes brancas, insuportavelmente brancas. De repente, sentiu uma força surreal, pegou a tesoura que tinha no estojo cor de rosa, e com uma agilidade oriunda da raiva que corria pelas veias daquele corpo cada vez mais debilitado, levantou-se.
O professor virou-se com o barulho e, com as costas empurrando o quadro contra a parede, ficou estarrecido, tomado pelo pânico, não acreditando no que seus olhos viam, sentindo gotas de sangue que espirravam em seu rosto. Via aquela aluna com o rosto em chamas atravessar a sala e, com destreza, perfurar os olhos dos colegas, cortar-lhes o rosto. E ria, ria e parecia dançar! Sentia sua coluna organizar os ossos e sentia-se a mais bela entre todas. Gritava: - Occidere eos! Enquanto suas mãos marcavam de vermelho as paredes brancas, o sangue pintava-lhe os lábios, dava-lhe novas energias, num turbilhão delirante. Não ouvia mais os risos, seus ouvidos não doíam mais, sentia-se linda. Ao fim, acercou-se da porta, olhou para o professor, deu-lhe um sorriso enigmático. O professor quase não respirava, olhava para a porta e para aquele obstáculo que impedia sua passagem. Sentiu um arrepio tomar-lhe conta do seu corpo.
Com os olhos fixos no professor, deu passos suaves para trás, encostando suas costas no parapeito do corredor. Abriu os braços e caiu do último andar do bloco A. Sentiu que seu corpo cortava o ar, sentiu a face gelar-se ao encontro com o piso frio, extremamente frio, os olhos a perder o brilho. Estava cercada de pessoas, não se sentia só. O saguão coloria-se de um vermelho vivo com o fluido da vida a escapar-lhe do corpo.


Essa história aconteceu de verdade com uma aluna da UFFS e por meses a mídia cobriu os acontecimentos. Todos comentavam a cena horrível que foi pintada naquela sala de paredes brancas. Renderam-se homenagens aos mortos. Pessoas, flores, velas, cartazes criavam um altar improvisado na entrada da universidade. As flores apodreciam e exalavam um odor de morte que impregnava as narinas, dia após dia e noite após noite. Devido aos acontecimentos, antecipou-se o fim do semestre. Quando as aulas recomeçaram, as paredes da fatídica sala já estavam lavadas e pintadas, embora, se alguém olhasse fixamente para alguns pontos do teto, ainda encontraria manchas escuras. E, em noites de vento, algumas pessoas dizem ter ouvido vozes ecoando pelos espaços vazios: mors sumus!