segunda-feira, 23 de setembro de 2019

ARMÁRIO A115


            Essa história aconteceu de verdade com uma estudante de Nutrição da UFFS.
            Não havia tempo. A rotina era intensa, com as aulas terminando muito perto do meio-dia e recomeçando um pouco depois da uma da tarde. Conseguir um transporte até o seu apartamento no centro e voltar era algo muito próximo de um milagre. E, mesmo que alguém fizesse esse favor, ela ainda teria de cozinhar, lavar a louça, enfim, muitos serviços.
            Melhor mesmo era almoçar no Restaurante Universitário, logo ali ao lado. Muito mais prático e rápido. E a velocidade das coisas sempre foi uma coisa que ela buscava. Não se tinha tempo a perder, cada segundo devia ser dedicado a alguma atividade, pois podia ser que fizesse falta mais tarde. “Sempre tenho o que fazer da meia-noite às seis”, “Hoje fui dormir às quatro da manhã, consegui estudar muito”, “Descansarei quando morrer” eram frases que dizia constantemente, como se ela fosse uma coach de si mesma.
            Naquele dia, no Bloco dos Laboratórios 3, mal a professora dispensou a turma, a moça pulou da cadeira e correu para os armários no corredor. Abriu o armário A115, agarrou sua mochila, tirou um caderno e a recolocou, nem se dando ao trabalho de fechar a porta. Esbarrou em algumas colegas e outras pessoas que estavam por ali, paradas, como se à espera de qualquer coisa. Queria comer logo, não por estar com fome, mas porque queria revisar a matéria da semana anterior, que mal teve tempo de ler. Só conseguiu ler uma vez a bibliografia básica que o professor mandou, ainda faltavam dez livros que precisava fazer anotações e memorizar para a prova que seria no mês seguinte.
No caminho até o RU, foi lendo o que escreveu em seu caderno. Durante o almoço, praticamente sem mastigar a comida, foi ouvindo uma gravação que fez da aula (com o consentimento da professora, claro). Subiu as pedras de volta para o laboratório, gravando um áudio para si mesma com lembretes para estudar à noite, quando chegasse em casa.
Era meio-dia e vinte quando novamente entrou no corredor. Dessa vez, sem ninguém à vista. As luzes estavam apagadas, pois era dia, o que dava uma sensação estranha, pois as únicas fontes de luz estavam nas duas extremidades do corredor. Andando, ela avançava nessa área de penumbra, até que o próprio eco dos passos parecia tomar conta de tudo. Todas as portas dos armários estavam fechadas, as chaves ainda estavam em alguns, mas dificilmente eram usadas. Dos outros, possivelmente elas foram perdidas, então mantinham-se destrancados.
A moça passou a mão distraída pelas portas dos armários e segurou a alça do seu. No instante antes de abrir, sentiu um calafrio de premonição, como contaria depois, mas na hora a intenção era abrir a porta e pegar seus materiais. E então, abrindo a porta, sentiu uma lufada de ar vindo do interior do armário. Estendeu a mão para pegar sua mochila, mas logo ficou imóvel. Lá dentro, dois pequenos olhos vermelhos brilhantes a encaravam. Piscou os olhos e até pensou em fechar a porta, mas o bicho no interior foi mais rápido. Ouviu apenas um “vuuu” do golpe de vento que balançou seus cabelos e o choque de algo mole e peludo em seu ombro.
O bicho tinha asas, e foi voando de modo desengonçado até a porta de vidro nos fundos do laboratório. Bateu-se na parte de cima, e suas asas quase tocavam, ao mesmo tempo, as extremidades do vidro. Soltou um grasnido triste, caiu no chão e se arrastou para fora. A moça estava encolhida junto ao bebedouro, mas espiou o que estava acontecendo ali junto à porta de vidro.
Tomando nova impulsão, o bicho conseguiu levantar voo até o telhado da Central de Reagentes. De lá, deu um salto e flutuou até a mata que levemente balançava com a brisa da tarde.


            Essa história aconteceu de verdade com uma estudante de Nutrição da UFFS...
            Depois disso, ela não quis mais fazer nada afobada. Passou a realizar todas as suas atividades num ritmo mais próximo das outras colegas, conscientemente vendo cada coisa que estava fazendo e prestando muita atenção no que acontecia ao seu redor. Além disso, seguindo as recomendações no manual dos laboratórios, ela passou a usar somente armários com chave. E conferir três vezes se a porta estava trancada.