quinta-feira, 3 de outubro de 2019

QUEM BATE?


Essa história aconteceu de verdade com um acadêmico da UFFS.
                Em meio a provas e trabalhos, é preciso ter uma grande organização para conseguir fazer todas as tarefas que os professores pedem, sem desagradar a nenhum. Compreende-se que cada professor imagina que a sua matéria é a mais importante e a que melhor formará seus alunos, mas é preciso ter em mente que, junto com ele, outros professores pensam exatamente assim e julgar os alunos como exclusivos seus e com dedicação total aos seus conteúdos é algo complicado...
                Por isso, quando o professor deu o recado de que o trabalho final do semestre deveria ser entregue em mãos, sem falta, até as 15 horas do dia 18 de dezembro, na sua sala do bloco dos professores, a turma engoliu em seco. Todos estavam meio pendurados, todos teriam de fazer e entregar. Mas um aluno, perdido em pensamentos de outra matéria, não processou a informação.
Os dias passaram, os trabalhos foram sendo entregues. Menos o dele.
Quando faltavam dois dias, ele pegou uma gripe e caiu de cama. Então, um amigo o visitou e comentou: “Que chato, pelo menos já é final do semestre. E o trabalho do professor já foi entregue”. Entre espirros, o aluno fez uma cara de espanto: “É verdade... Falta fazer isso. Mas até quando que dá para entregar?”, “Depois de amanhã”. Poucas vezes o desespero conseguiu ser personificado tão intensamente por uma pessoa. Sem saber o que fazer, como sistematizar as ideias, mesmo com o corpo baqueado pela doença, tomando chás e água, medicamentos e calmantes, o aluno tentou produzir o que seria satisfatório ao professor. Sabia que dizer que estava doente não ajudaria em nada, pois já era véspera de fim de semestre, e a última coisa que o professor faria era entender o seu lado da situação. Era simples, ou o trabalho estaria em suas mãos para a correção, ou não. Ou o aluno seria aprovado, ou não.
Com custos só compreensíveis para ele, conseguiu finalizar na manhã do dia 18. Lá fora, o mundo desabava em tempestade, a água descia em baldes, batia nas janelas e o vento uivava por todas as frestas. Trovões se ouviam por toda parte. Como levar o trabalho? Os colegas todos já tinham viajado. Não tinha dinheiro para pagar um táxi. Não havia pessoa a recorrer. Sem pensar direito, pôs o trabalho num saco plástico e teve de ir a pé. Pois já eram 14 horas.
Todo o caminho até a UFFS foi feito sob a ação do vento, ora empurrando, ora puxando, arrastando o aluno enquanto pisava em poças de água e barro, escorregava em pedras e tentava se proteger debaixo de um frágil guarda-chuva com cinco hastes quebradas.
Chegou na universidade tossindo e pingando, tremores por todo o corpo, mas com o trabalho seco. As luzes do saguão estavam apagadas, pois não havia ninguém ali. Os servidores estavam numa reunião de encerramento do ano letivo no outro bloco. Com passos de um esgotamento vitorioso, foi até a sala do professor. Deu três tímidas batidas na porta, num ritmo lento e inseguro (toc... toc... toc...) Não houve qualquer resposta.
Olhou em seu relógio, eram 15 horas exatas. O professor deveria estar ali ainda, para que pudesse receber o seu trabalho, feito a tanto custo. Bateu novamente, três batidas curtas, ainda com certo receio, como se desejasse ser uma presença que se quer mostrar sem incomodar. Pensou em jogar o trabalho por debaixo da porta, mas o professor falou “em mãos”, então ele poderia reprovar justamente por não ter o olhar comprobatório da entrega concreta.
Decidiu bater uma terceira vez, dessa vez com um pouco mais de força, mas ainda com o respeito que só existe quando o medo impera, mesmo sem a presença do ser temido. Nenhum som foi ouvido no lado de dentro.
Torceu sua camisa encharcada, fazendo uma grande poça na porta do professor. Pensou no que faria. Esperar ali talvez não fosse a melhor opção, especialmente porque um vento frio passava pelo corredor, dando-lhe calafrios. Melhor seria achar outra pessoa, outro professor, para mostrar-se e ser uma testemunha de que ali estava. Foi até a porta vizinha, bateu três vezes e aguardou. Também não houve qualquer sinal de vida. Bateu em outra. E outra. E mais outra.
Uma tosse aguda fez com que todo o seu corpo tremesse e arqueasse seu corpo para a frente. Sua mão segurou a parede, para evitar que caísse no chão. Virou-se e, pouco a pouco, seu corpo deslizou até que ficou sentado no chão. Descansaria ali um pouco, para recuperar as forças enquanto esperava o professor.
Cerca de uma hora depois, quando os servidores voltaram ao bloco, encontraram o rapaz desmaiado, com grande febre e em convulsão. Levaram-no ao hospital, mas o quadro de pneumonia já estava muito agravado. Ainda ficou internado por dois dias, antes de falecer.

Essa história aconteceu de verdade com um acadêmico da UFFS.
No meio do tumulto para levá-lo ao hospital, os seus papéis acabaram se perdendo. Mas já houve relatos de professores que, fechados em suas salas, ouviram, muito de leve, três batidas na porta. Pode ser ainda o aluno buscando o professor para entregar-lhe o trabalho.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

ARMÁRIO A115


            Essa história aconteceu de verdade com uma estudante de Nutrição da UFFS.
            Não havia tempo. A rotina era intensa, com as aulas terminando muito perto do meio-dia e recomeçando um pouco depois da uma da tarde. Conseguir um transporte até o seu apartamento no centro e voltar era algo muito próximo de um milagre. E, mesmo que alguém fizesse esse favor, ela ainda teria de cozinhar, lavar a louça, enfim, muitos serviços.
            Melhor mesmo era almoçar no Restaurante Universitário, logo ali ao lado. Muito mais prático e rápido. E a velocidade das coisas sempre foi uma coisa que ela buscava. Não se tinha tempo a perder, cada segundo devia ser dedicado a alguma atividade, pois podia ser que fizesse falta mais tarde. “Sempre tenho o que fazer da meia-noite às seis”, “Hoje fui dormir às quatro da manhã, consegui estudar muito”, “Descansarei quando morrer” eram frases que dizia constantemente, como se ela fosse uma coach de si mesma.
            Naquele dia, no Bloco dos Laboratórios 3, mal a professora dispensou a turma, a moça pulou da cadeira e correu para os armários no corredor. Abriu o armário A115, agarrou sua mochila, tirou um caderno e a recolocou, nem se dando ao trabalho de fechar a porta. Esbarrou em algumas colegas e outras pessoas que estavam por ali, paradas, como se à espera de qualquer coisa. Queria comer logo, não por estar com fome, mas porque queria revisar a matéria da semana anterior, que mal teve tempo de ler. Só conseguiu ler uma vez a bibliografia básica que o professor mandou, ainda faltavam dez livros que precisava fazer anotações e memorizar para a prova que seria no mês seguinte.
No caminho até o RU, foi lendo o que escreveu em seu caderno. Durante o almoço, praticamente sem mastigar a comida, foi ouvindo uma gravação que fez da aula (com o consentimento da professora, claro). Subiu as pedras de volta para o laboratório, gravando um áudio para si mesma com lembretes para estudar à noite, quando chegasse em casa.
Era meio-dia e vinte quando novamente entrou no corredor. Dessa vez, sem ninguém à vista. As luzes estavam apagadas, pois era dia, o que dava uma sensação estranha, pois as únicas fontes de luz estavam nas duas extremidades do corredor. Andando, ela avançava nessa área de penumbra, até que o próprio eco dos passos parecia tomar conta de tudo. Todas as portas dos armários estavam fechadas, as chaves ainda estavam em alguns, mas dificilmente eram usadas. Dos outros, possivelmente elas foram perdidas, então mantinham-se destrancados.
A moça passou a mão distraída pelas portas dos armários e segurou a alça do seu. No instante antes de abrir, sentiu um calafrio de premonição, como contaria depois, mas na hora a intenção era abrir a porta e pegar seus materiais. E então, abrindo a porta, sentiu uma lufada de ar vindo do interior do armário. Estendeu a mão para pegar sua mochila, mas logo ficou imóvel. Lá dentro, dois pequenos olhos vermelhos brilhantes a encaravam. Piscou os olhos e até pensou em fechar a porta, mas o bicho no interior foi mais rápido. Ouviu apenas um “vuuu” do golpe de vento que balançou seus cabelos e o choque de algo mole e peludo em seu ombro.
O bicho tinha asas, e foi voando de modo desengonçado até a porta de vidro nos fundos do laboratório. Bateu-se na parte de cima, e suas asas quase tocavam, ao mesmo tempo, as extremidades do vidro. Soltou um grasnido triste, caiu no chão e se arrastou para fora. A moça estava encolhida junto ao bebedouro, mas espiou o que estava acontecendo ali junto à porta de vidro.
Tomando nova impulsão, o bicho conseguiu levantar voo até o telhado da Central de Reagentes. De lá, deu um salto e flutuou até a mata que levemente balançava com a brisa da tarde.


            Essa história aconteceu de verdade com uma estudante de Nutrição da UFFS...
            Depois disso, ela não quis mais fazer nada afobada. Passou a realizar todas as suas atividades num ritmo mais próximo das outras colegas, conscientemente vendo cada coisa que estava fazendo e prestando muita atenção no que acontecia ao seu redor. Além disso, seguindo as recomendações no manual dos laboratórios, ela passou a usar somente armários com chave. E conferir três vezes se a porta estava trancada.

terça-feira, 27 de agosto de 2019


REGULAMENTO CONCURSO DE CONTOS
"ACONTECEU DE VERDADE" - LENDAS URBANAS DA UFFS

1.    O Concurso de Contos se destina a todas as pessoas interessadas em produzir narrativas enquadradas no gênero “conto”. A inscrição é gratuita.
2. Consideram-se inscritas as obras enviadas para o e-mail lendasurbanasuffs@gmail.com, no período de 25 DE AGOSTO A 31 DE OUTUBRO DE 2019.
A narrativa deverá ser escrita em língua portuguesa, digitada em espaço 1,5 (um e meio), com fonte Arial, tamanho 12 (doze), margens 2 cm, paginada, obedecendo a um limite máximo de 05 (cinco) páginas e salva em Microsoft Word (.doc ou .docx). O nome do arquivo deve seguir a diretriz:
Nome do Autor - TÍTULO DA NARRATIVA;
3.    A temática deste Concurso é "Lendas Urbanas da UFFS". Nesse sentido, devem ser criadas narrativas que versem sobre seres e/ou eventos sobrenaturais que aconteçam no âmbito dos espaços do Campus Realeza da Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS.
4.    A narrativa deve começar com a seguinte frase: "Essa história aconteceu de verdade com um(a) (estudante, professor(a), técnico(a), visitante) da UFFS";
5.    Não há limite de narrativas por pessoa;
6.    A Comissão Julgadora será composta por membros de reconhecido nível intelectual e acadêmico;
7.    Havendo sugestões de adequação das narrativas, a Comissão devolverá o arquivo ao Autor, no sentido de adaptá-la visando a uma coerência entre todas as narrativas inscritas;
8.    Narrativas que não se adequem ao regulamento serão desqualificadas.
9.    Todas as narrativas inscritas, após as adaptações necessárias, comporão o e-book "Aconteceu de verdade" - Lendas Urbanas da UFFS, a ser publicado em 2020 pela Editora da UFFS;
10.Dúvidas, favor entrar em contato pelo e-mail lendasurbanasuffs@gmail.com

domingo, 18 de março de 2018

O QUINTO ANDAR


            Essa história aconteceu de verdade com um estudante de Medicina Veterinária da UFFS.
            Não há muito o que se fazer na Universidade, quando não se está nas salas de aula. Pode-se ir à biblioteca, ficar conversando nos bancos, olhando as pequenas coisas que vão se sucedendo no tempo parado.
Com o ônibus vindo somente ao final da tarde, com as aulas já encerradas e sem nenhum colega por perto, o estudante pensou em matar os minutos jogando pingue-pongue na salinha que montaram no quinto andar. Talvez o saguão deserto fosse apenas indício de que alguns alunos estariam lá.
Subiu todas as escadas, deu três leves batidas no corrimão, antes de chegar à última porta. Do lado de dentro, podia-se ouvir o barulho característico da bolinha de pingue-pongue batendo, então ele animou-se e girou a maçaneta. A porta abriu e, ao invés de encontrar duas ou mais pessoas jogando, encarou apenas um silêncio pesado e um feixe de luz projetado, com partículas de poeira dançando.
            Andou devagar para dentro, apenas para certificar-se de que não havia ninguém mesmo, quando, na direção do canto direito, começou a se fazer ouvir, muito baixo, quase como um sussurro, um choro ou, pelo menos, um lamento muito triste. Arriscou mais alguns passos, e foi quando viu, semiocultada pela parede, agachada, uma mulher usando roupas brancas, com as mãos postas sobre o rosto coberto pelos compridos cabelos pretos.
            Com certo temor e receio de ser incomodativo, aproximou-se para saber se ela precisava de ajuda. Ela ergueu-se de repente e gritou: “Sai!”. As mãos da mulher se afastaram, revelando um rosto que estava totalmente machucado, escurecido. A boca era uma chaga aberta, sem dentes. Os olhos, dois poços nos quais nenhuma luz entrava ou se refletia.
            O susto do rapaz foi tão grande que desceu a escada de quatro em quatro degraus. Tropeçou e rolou, batendo a cabeça na parede e ficando com o rosto virado para a porta do quinto andar. Muito devagar, como se usasse o intervalo de várias horas, um braço branco, tomado por veias azuis, esticou-se e foi fechando aquela porta, sem qualquer ruído.
            Ainda tonto da queda, o estudante desceu mais um andar, quando achou dois vigilantes, que subiam para verificar o tinha sido aquele barulho. Falando coisas desconexas, “uma mulher... bolinha... gritando... cabelos”, apontou para a porta e afastou-se do caminho.
            Os vigilantes abriram a porta com cuidado, abriram as janelas, vasculharam os cantos todos, mas nada encontraram. Quando um deles estava saindo, sem querer, chutou uma bolinha de pingue-pongue que estava no chão, e ela foi quicando os degraus todos, num ritmo sereno e inocente.

            Essa história aconteceu de verdade com um estudante de Medicina Veterinária da UFFS.
Os vigilantes ficaram desconfiados, mas não deram muita importância ao fato. Possivelmente o rapaz estava imaginando coisas. Mas ele, por via das dúvidas, a partir desse dia, resolveu passar o tempo e exercitar suas habilidades em partidas de xadrez, mais calmas, sem sustos e, principalmente, no térreo.


A NOIVA


Essa história aconteceu de verdade com um vigilante da UFFS.
Nas primeiras horas da madrugada, um vigilante saiu da guarita, olhou pelas portas de vidro da entrada e subiu as escadas do Bloco A para fazer a ronda de rotina nos andares. O barulho das chaves em sua mão marcava o ritmo dos passos, inclusive fazendo um eco, por ser o único som existente.
Esse vigilante era muito sistemático, e a cada andar olhava pelas janelas o amplo estacionamento (a essa hora, vazio), passava pelas portas dos três elevadores e percorria as salas pelos números decrescentes, fazendo toda a volta no andar. Sempre abria cada sala, lançava a luz da lanterna em panorama, trancava a porta e dava uma pequena batida no batente com o cabo da lanterna. Era uma forma de autoafirmação, como se marcasse um ponto para si mesmo.
Quando estava no quarto andar, olhou para o interior da sala em que os estudantes geralmente ficam e percebeu, sem muita importância, um feixe de luz amarelada. Reflexo da lua, por certo. Começa a volta e, quando marcou o ponto perto do bebedouro e da sala 406, julgou escutar um barulho no outro lado do andar. Como se alguém estivesse amassando peças de roupa, ou vestindo...
Achou estranho, mas podia ser somente o som das árvores lá fora, ou o próprio cansaço de subir todas aquelas escadas. Continuou a andar, pelo outro lado do corredor, até regressar à sala dos alunos. Olhando de relance, notou que, lá dentro, estava uma mulher branca, muito branca, vestida de noiva, com cabelos encaracolados muito loiros e esvoaçantes e olhando para ele através do vidro, com olhos negros que parecem abismos. Ela fez um gesto para ele se aproximar e ele, hipnotizado, vai andando passo a passo.
Quando o vigilante quase estava encostando seu rosto no vidro, tão perto que a respiração começava a embaçar, aquela estranha mulher, sorridente, aproximou-se também e falou, com uma voz doce e angelical: "Eu perdi meu noivo num acidente logo ali, na estrada. Você não quer casar comigo?".
Ele não sabia o que responder. Toda aquela situação era absurda e não havia maneira segura de escapar. Segurando a lanterna com força na mão esquerda, sentiu a sua aliança pressionar os dedos. Então, tentando disfarçar o terror com uma voz tranquila: “Não posso, moça. Sinto muito. Você é muito bonita, mas eu sou casado, fiel à minha esposa. E eu preciso trabalhar”.
Houve uma transformação, o ar todo pareceu congelar e a figura feminina se contorceu. Os cabelos se tornaram agulhas, as mãos se tornam garras, os olhos ganham um brilho de ódio. E ela, apontando-lhe um dedo negro e trêmulo, "Então terei de me casar com outro!".
E sumiu.

Essa história aconteceu de verdade com um vigilante da UFFS.
A noiva não foi mais vista, ou porque foi para outro local atrás de um marido, ou porque ainda não encontrou outro pretendente sozinho pela UFFS. E o vigilante, no fim de seu turno, voltou para casa, abraçou-se com sua esposa, beijou-a e declarou que nunca se separaria dela, pois percebeu que o casamento é capaz de salvar a vida de um homem...

OCUPADO!


Essa história aconteceu de verdade com um estudante da UFFS.
            Nos laboratórios, há um grande trânsito de gente. Nos inícios e finais das aulas, o corredor é subitamente tomado por conversas, risadas, portas abrindo, enfim, pessoas. No resto do tempo, algum funcionário transita, acadêmicos vão apressados para alguma sala. As luzes quase não são acesas durante o dia, pois não se vê necessidade, e sempre é bom manter uma consciência ecológica.
            Um aluno de Ciências Biológicas estava desenvolvendo uma pesquisa sobre as espécies vegetais do entorno da UFFS, há mais de dois anos, e praticamente vivia no laboratório 301. Mesmo nas tardes livres, gostava de ficar por ali, ou andar pelo campus, ou analisar amostras das últimas plantas recolhidas.
            Em um fim de tarde, com um silêncio pesado imperando, só interrompido por trovões abafados, ele fechou o armário e pensava em comer alguma coisa enquanto esperava as aulas da noite. Trancou a porta, entregou a chave ao técnico de plantão e, antes de sair, pensou em ir ao banheiro.
            As lâmpadas estavam apagadas, pois ainda havia uma sutil iluminação externa do sol, mesmo oculto por várias nuvens. O estudante se olhou no espelho, abriu a torneira e jogou um pouco de água no rosto. Ela não estava somente fria, estava estranhamente gelada, quase contendo cristais de gelo ou, pelo menos, assim pareceu-lhe. O fio de água minguou e fechou-se. Uma brisa ligeira, vinda de lugar nenhum, passou por ali, causando-lhe um calafrio. Soltando um riso curto de descrédito, apertou novamente a torneira, para comprovar a temperatura da água. Dessa vez, um vapor envolveu toda a pia, com o calor daquela água em ebulição.
            O rapaz deu um salto para trás, arregalando os olhos. Suas mãos estavam tremendo e ele não acreditava que tal mudança abrupta de temperatura fosse fisicamente possível, naquele ambiente. Já querendo secar as mãos e ir embora dali, olhou sem muita atenção para o piso na frente dos sanitários. De um deles, o terceiro a partir da porta, havia pegadas de terra em direção à saída. Como ele não tinha percebido isso ao entrar? Como aquilo não foi esfregado pelas mulheres da limpeza? E – após olhar com mais atenção – por que pareciam feitas de pés descalços?
            Tentou abrir aquela porta, mas ela estava trancada por dentro... Ajoelhou-se, espiou por baixo, não enxergou nada.
            Foi quando um suave som, como um engasgo, foi ouvido do outro lado daquela porta. Com muito medo, mas talvez sentindo mais curiosidade, o estudante bateu de leve, perguntando se estava tudo bem. Por alguns instantes, o barulho cessou. Depois, o trinco foi acionado e a porta começou lentamente a se abrir.
            Sentado no vaso sanitário estava um menino magro, pequeno, sem camisa, com os pés descalços sujos de terra. Mas o que mais se destacava eram os seus cabelos vermelhos, com uma cor de fogueira alta e viva, e seus olhos, como dois tições acesos, e sem pálpebras.
            O estudante deu três passos para trás até esbarrar nas pias e segurou-se com mãos trêmulas para não cair no chão. Os olhos do menino o encaravam, abriam-se em abismo indefinível, com somente uma centelha de luz morta oscilando no fundo. Saltou do vaso sanitário, pisando no chão com um som molhado, de barro sob os pés.
            “Vocês mataram muitas plantas para construir isso aqui”. O tom de voz do menino parecia transmitir uma repreensão, mas carregava também muita tristeza. O estudante gaguejou alguma coisa aos modos de desculpa, mesmo sem saber direito pelo que se estava desculpando.
            Mais passos foram dados. O menino de olhos profundos e cabelo cor de fogo já estava muito próximo, quase ao alcance do braço estendido. Foi então que houve uma mudança súbita: os cabelos se eriçaram, parecendo inflamar-se ainda mais; os olhos adquiriram uma coloração de ferro em brasa; os dentes, num sorriso tenebroso, estavam cobertos de um limo verde-escuro. “E isso não vai ficar assim!”
            Juntando forças desconhecidas, o estudante saltou pela pia, contornou a porta do banheiro e disparou em loucura pelo corredor, batendo em todas as portas e armários, tentando chamar a atenção de alguém. Um técnico estava voltando, estranhou o barulho e quis saber o que houve.
            O estudante apenas apontou para o banheiro, banhado em suor frio e mal conseguindo respirar. O técnico foi até lá, mas não encontrou nada. Apenas algumas pegadas de barro, que traçavam um caminho desencontrado até a janela que dava acesso aos fundos do edifício.

            Essa história aconteceu de verdade com um estudante da UFFS.
          Ninguém mais viu o estranho menino, embora às vezes sopre um vento dentro dos laboratórios, mesmo com portas e janelas fechadas, acompanhado de um som de engasgo. Quando ao estudante, ele abandonou a pesquisa e agora planta uma árvore por semana, pelo menos, e nem pisa mais na grama, com medo de estar sendo indelicado com a natureza.

O MISTÉRIO DA ÁRVORE


Essa história aconteceu de verdade com duas estudantes de Medicina Veterinária da UFFS.
Eram amigas de longa data, de pais e avós vizinhos de porta. Viveram sempre unidas, ligadas, pareciam até irmãs, diziam todos. Brincaram juntas, cresceram juntas. Estudaram juntas para passar no curso de medicina veterinária. As amigas se mudaram para cidade de Realeza, com todo o turbilhão de novidades que uma graduação oferece, novos professores, novas pessoas, tudo novo para envolver uma amizade antiga. A própria Universidade estava recém-instalada no campus definitivo, com alguns lugares ainda em construção.
Nos meses que seguiram do curso, uma das moças começou a apresentar uma mudança de comportamento. Ela fez novas amizades, ia em festas e encontros sozinha, quase sempre sem a presença da outra.
Esse distanciamento só se foi alargando com o passar do tempo, de modo que, no segundo ano de graduação, aquela moça viu sua grande amizade resumir-se a cumprimentos secos e mínimos.
Um dia, enquanto ela esperava o ônibus sozinha, uma garota aproximou-se. Conversou longamente, viu que tinha muito em comum com aquela nova moça, e notou que a amizade é algo que sempre deve ser cultivado e, quando se esquece e ignora, acaba por morrer.
Nos dias que se seguiram, ela ficava procurando a nova moça. Esquecera-se de perguntar qual era o curso que fazia. Acabou por encontrá-la sentada na grama, do lado de fora do Bloco A, isolada. Ela tinha uma feição distinta de qualquer pessoa, tinha olhos castanhos, cor de terra, a pele suavemente queimada e um vestido de tons verde-escuros.
Depois de mais algumas semanas, no início de julho, com o inverno se anunciando e as árvores já despidas de todas as folhas, aquela garota aconselhou a nova amiga a tentar uma última aproximação com a “ex-amiga”. Como a UFFS estava em época de avaliações finais, não haveria muita gente, então poderiam se encontrar no pátio em construção entre os blocos de laboratórios e conversar à vontade.
Fazia uma tarde de frio, estranha e chuvosa, de muito vento. As árvores da mata atrás dos laboratórios pareciam acenar, de tão forte que eram as rajadas. Entre morros de terra, buracos e blocos de concreto, as duas conversaram por um longo tempo, esquecerem de tudo e de todos.
Por fim, a amizade estava restabelecida, quando perceberam a garota de vestido verde estava se aproximando, andando enigmática no meio do vendaval. A chuva parecia descer à volta dela, sequer a tocando, enquanto seus cabelos balançavam ao vento. Ela abraçou-se às duas moças, com uma força descomunal. Arrastou-as até um dos buracos destinados à arborização do pátio e, sem levantar o tom de voz, mesmo com rajadas de vento uivando por todos os lados, falou que era um ser da natureza e que desejaria voltar ao seu estado original. Para isso, precisava da essência vital de dois humanos ligados por laços de amizade. Seus braços começam a se tornar troncos e o vestido aumentava, envolvia aquelas moças.
As amigas mal tiveram tempo de pensar no que estava acontecendo, apenas conseguiram erguer os braços, tentando escapar, mas foi em vão.

Essa história aconteceu de verdade com duas estudantes de Medicina Veterinária da UFFS.
As famílias das duas moças vieram para procurá-las, mas não havia qualquer informação. E quando os operários vieram para terminar o serviço de arborização do pátio na frente dos laboratórios, estranharam que uma das árvores já estava plantada, com raízes tão fundas que parecia já ter décadas, e galhos que, quando estão sem folhas, parecem dedos que se esticam...