quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O ESPELHO

Essa história aconteceu de verdade com uma professora da UFFS.
Após uma noite de aulas, enquanto caminhava a passos curtos para o Bloco dos Professores, ela suspirava, mas não de alívio. Havia dentro de si, desde a semana anterior, um peso, uma angústia inexplicável. A professora esforçava-se para manter uma aparência de normalidade, mas alguns alunos pareciam perceber esse incômodo e conversavam com ela. Alguns colegas também. Mas tudo com certa distância, afinal, a vida pessoal de cada um não diz respeito aos outros...
            Nenhum outro professor estava ali. Percorreu o corredor do segundo andar, desceu as escadas e viu o vigilante, que aguardava a sua saída do Bloco, segurando a chave da porta principal nas mãos. Ele ensaia um sorriso, meio a furto, e dá uma despedida. “Boa noite, professora, quer que lhe acompanhe até o carro?”. Ela aceita a gentileza, pois nunca se sabe o que se poderia encontrar no estacionamento. O barulho das pedras se insinuava. “Sempre sou eu que fecho o Bloco. O meu colega não gosta de vir aqui tão tarde. Diz que não sente boas vibrações”. A professora deu um sorriso triste. Não acreditava nessas coisas, nem dava muita importância ao plano espiritual. Para ela, religião ou ocultismo eram somente tentativas humanas de dar sentido a algo inexplicável, por ser inexistente.
            Ela entrou em seu carro, despediu-se do vigilante e foi para casa. Durante todo o caminho, uma melancolia lhe nublou os olhos. Estava se sentido anestesiada, como se uma droga estivesse atuando sobre seu corpo, mas era apenas a tristeza de estar longe da capital. Às vezes tinha essa nostalgia, que ia crescendo até se tornar uma ânsia de regressar.
            No dia seguinte, logo cedo, a campainha tocou. Era uma encomenda: um espelho da sua altura, com uma moldura dourada, quase barroca, que ela comprara num estranho antiquário da capital, pensando em decorar a sua sala no Bloco dos Professores. Alguns docentes colocavam quadros, outros tinham prateleiras (muitas) com livros (muitos), mas nenhum tinha um espelho e ela achou que seria interessante trazer esse toque original e criativo para dar presença à sala. Havia um bilhete colado ao vidro: “Uma forma de trazer Curitiba até você – ou você até Curitiba”.
            No início da tarde, ela levou um martelo e instalou o espelho. Uma colega que passava, voltou e se impressionou com a beleza do objeto, tinha um ar antigo, de um outro tempo e lugar. Isso fez com que a professora se lembrasse da conversa do vigilante, no dia anterior. E terminou ironizando que, naquele Bloco, deveria ter “algo a mais”. Mas a outra professora tomou um ar fechado e sombrio: “Não acho sem sentido o medo daquele vigilante. A Universidade pode ter poucos anos de existência, mas guarda muitos segredos. Além do mais, o lugar é afastado do meio urbano e pode sim acabar atraindo vibrações que estão procurando refúgio”.
            Enfim, uma atmosfera pesada de “más vibrações” não era o que a professora queria, especialmente por já ter as suas próprias vibrações conflituosas internas. Por isso, deixou-se trabalhar sozinha em sua sala, de vez em quando olhando-se no espelho, como se assim não se sentisse tão sozinha.
            As horas passaram voando e, num piscar de olhos, já era o final da noite. Levantou-se da mesa e estava indo para a porta, quando uma sensação de sufocamento tomou conta dela. Primeiro pensou que poderia ser uma crise (como há muito tempo não tinha), mas, ao voltar seus olhos para o espelho, notou uma neblina estranha, como se, pelo reflexo, sua sala estivesse tomada por uma fumaça cinza-escura.
            A professora mal conseguia se mexer, parecendo hipnotizada. Esqueceu que estava indo embora, mal pensava no que estava fazendo, apenas olhava para o espelho e, pé ante pé, tentava observar algo em meio à névoa do outro lado.
            Três passos dados, começou a distinguir um vulto, que se aproximava no reflexo do espelho. Esticou o braço e, com os dedos, encostou na superfície fria de vidro. O arrepio que sentiu percorreu todo o seu corpo, mas não afastou a sua mão, que, espalmada, refletia uma outra mão, possuidora de uma cor morta.
            A névoa do outro lado do espelho se dissipou um pouco, revelando uma forma humana de mulher, muito magra e pálida, com um vestido fino e encardido que oscilava ao sabor de uma brisa inexistente. Com surpresa, ela percebeu que aquela mulher, em algum nível incompreensível, era ela. Os traços de ambas eram parecidas, mas a mulher do espelho tinha olheiras escuras circundando seus olhos, que eram dois poços negros que emanavam um ódio aniquilador. A professora, baixando um pouco o olhar, notou que a boca da estranha figura se contorcia num esgar, que poderia até ser um sorriso, se não revelassem uma crueldade monstruosa.
            Com um esforço acima de suas forças, ela conseguiu remover a mão da superfície do espelho. Mas a mulher do espelho começa a falar, em sons tão agudos que agridem os ouvidos, obrigando a professora a buscar uma saída. A porta, sem explicação, está trancada.
            Sem escapatória, tampando os ouvidos com as mãos, a professora sobe em sua mesa e pula pela janela, quebrando o vidro e mergulhando na noite.

Essa história aconteceu de verdade com uma professora da UFFS.
Na queda, ela acabou sofrendo um traumatismo craniano e encontra-se em coma num hospital de Curitiba, sua cidade natal. Todos os seus pertences foram enviados à família, exceto, por razões desconhecidas, o espelho com moldura dourada. Ele está no sótão do Bloco dos Professores, com uma rachadura no canto inferior, como se um pedaço tivesse escapado pela moldura.