Essa
história aconteceu de verdade com dois residentes do Hospital Veterinário da
UFFS.
Quando foram escalados para o
plantão noturno pela primeira vez, aqueles dois pensaram que seria uma noite
tranquila, afinal, alguém pensaria várias vezes antes de levar o seu animal ao
Hospital: somente em casos gravíssimos e inadiáveis.
Depois que o relógio do computador
anunciou a meia-noite, indicando que já era sexta-feira, um deles tinha
encerrado um jogo de paciência. O outro estava sentado, olhando um canto da
parede sem, na verdade, olhar coisa alguma.
O barulho da porta abrindo com
estrondo fez os dois saltarem em suas cadeiras, olharam em volta ainda perdidos
e identificaram a origem do barulho: uma mulher levava, em um carrinho de mão,
um animal. Ele parecia ferido e sua respiração ofegante e com suspiros fundos
indicava que estava sofrendo. A mulher tinha vindo da fazenda, moradora da
linha Sertaneja, e estava desesperada por ajuda.
Os rapazes se dividiram. Um pegou o
carrinho de mão com o animal e correu para dentro, para iniciar o diagnóstico.
O outro ficou com a mulher, perguntou o que tinha acontecido, mas ela não dizia
muita coisa, somente frases desconexas, que olhou pela janela, saiu de casa,
não viu nada, voltou e viu o bicho agonizando no meio do corredor. O residente
tocou em seu ombro, pediu que ela se tranquilizasse, e que assim que a cirurgia
terminasse ele voltava para avisar. A mulher sentou-se e agarrou com força uma
sacola em que havia roupas, ou assim parecia.
O rapaz estava andando pelo
corredor, com a luz de algumas lâmpadas piscando, o eco dos seus próprios
passos cada vez mais alto, quando foi chamado pelo colega. Ele tinha feita um
ultrassom no bicho, parecia que tinha um objeto estranho alojado no estômago. Teriam
de fazer uma incisão. Quando deitaram o animal na mesa de cirurgia é que
finalmente perceberam como ele era grande: era um cachorro vira-lata, pesando
praticamente cem quilos, com o pelo muito espesso e duro, pernas grossas e
compridas e uma boca pouco maior que a mão dos rapazes. Ele estava anestesiado,
com a língua pendendo para fora da boca e a respiração funda, mas mesmo assim
transmitia certo temor.
Cortaram os pelos da barriga, em
tufos, e esterilizaram o local. Um deles manejou o bisturi, venceu as barreiras
da pele e chegou até o conteúdo do estômago. Espantou-se, pois começou a sair
uma fumaça fina lá de dentro, como se tivessem derramado ácido. Quando ela se
dissipou, pela cavidade, alguma coisa parecia brilhar. Pediu a pinça e, com um
movimento certeiro pegou o objeto estranho que aparecera no ultrassom: uma
corrente com uma medalhinha prateada de São Francisco de Assis. Depositou-a na
bacia, fazendo um barulho de metal. Os batimentos cardíacos do animal
permaneciam estáveis, tudo entrou numa espécie de paz tensa. Não demorou muito
para que suturassem o corte e finalizassem o procedimento.
Respiraram aliviados, um levando o
animal para a sala de recuperação, o outro indo chamar a mulher, possivelmente
apreensiva na sala de recepção. Ela ficou muito feliz com a notícia, agradeceu
muito e perguntou da medalhinha. Ao recebê-la das mãos do residente, segurou-a
e confessou: "Não sei como foi que ele engoliu, mas eu uso essa medalha
como proteção para ele". O rapaz levou a mulher até o quarto onde estava o
seu cachorro e logo saiu, acompanhado do colega.
Os dois voltaram à recepção e se
perguntaram se a mulher pensava em dormir ali, procedimento que não era
permitido. Esperaram mais meia hora, quase três e meia da manhã, e iriam voltar
ao quarto para ver como estavam as coisas. Foi quando ouviram o eco de passos
no corredor, e dois vultos se aproximaram: a mulher e um homem usando as roupas
que ela trouxera. O casal, mesmo exausto, estava muito feliz por tudo ter dado
certo.
O homem agradeceu muito e a mulher,
com lágrimas nos olhos, despediu-se dos dois rapazes. Ainda acenavam quando
entraram na caminhonete, com o carrinho de mão na caçamba, e voltavam para a
estrada, numa noite tão limpa, com uma grande lua cheia reinando sobre todo o
céu.
Essa história aconteceu de verdade
com dois residentes do Hospital Veterinário da UFFS.
Depois
disso, eles pediram (imploraram) para que os seus plantões ficassem em qualquer
outra semana, exceto quando tivesse lua cheia, e mal saíam durante a noite. E
alguns dos outros residentes até ficavam assustados quando, em algumas
madrugadas, ouviam uivos altos em volta do Hospital. Se escutassem bem, talvez
até percebessem ali um tom de gratidão.
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