terça-feira, 31 de outubro de 2017

OCCIDERE EOS

Essa história aconteceu de verdade com uma acadêmica da UFFS. Ninguém sabe ao certo o que ocorreu. As mortes permanecem um mistério, obscuras e sem sentido para aqueles que apenas serviram de espectadores do fato.
Era o primeiro dia de aula, os acadêmicos andavam e entravam nas salas, iam à cantina, conversavam e sorriam. Dentre os “calouros”, uma moça dócil, meiga, tímida, com seus cabelos cor de mel, olhos miúdos e sorriso metalizado. Mas era feia. Parecia pagar pelos pecados dos seus pais, mesmo não tendo cometido os seus próprios.
Ao adentrar pela primeira vez a sala de aula, deparou-se com um homem alto, moreno, de olhos castanhos e sorriso largo. Do encontro, o resultado foram cadernos ao chão e risos de um grupo que observava a cena a distância. O rapaz não lhe deu atenção, apenas desculpou-se apressadamente e saiu. Alguns a olharam com pena, outros nem isso. Ninguém lhe ajudou. Devido ao seu problema de coluna, teve de se contorcer para poder alcançar os seus cadernos, apoiando-se na parede. Respirava com dificuldade quando se sentou na cadeira da primeira fila. O esforço a fez corar e ainda mais a vergonha de ouvir, meio escondido, risadas que se tentavam disfarçar.
Os risos penetravam em seus tímpanos como agulhas a lhe furarem a fina membrana, quase sangravam, como em um perpétuo e contínuo castigo a arrancar-lhe um pedaço do corpo. Assim foi, dia após dia. E os risos pareciam o som do bater do bico de um corvo numa vidraça, seu coração endurecia, seus olhos ardiam, vermelhos. Volta e meia, mesmo quando sozinha, ouvia risos abafados e olhares desdenhosos. Sentia por si mesma um ódio mortal. Não podia crer que aquela tortura que havia passado por anos no ensino médio se repetiria.
No quarto que alugara não havia espelhos, encarar-se parecia alimentar ainda mais o desprezo por si mesma. Sempre que caminhava com dificuldade, olhava através dos óculos fundo-de-garrafa que lhe pesavam sobre o fino nariz. Os risos não cessavam e seus ouvidos doíam cada vez mais, ao passo que sua coluna se dobrava como um caracol, suas costas a faziam curvar-se e sangrava. Não sabia onde, mas sangrava.
Ir para a universidade tornou-se um calvário, mas ficar em seu quarto, sozinha parecia pior. Todos os dias, fazia o mesmo caminho para casa e o fazia a pé, pois não tinha coragem de ir no ônibus que levava os estudantes. Durante o trajeto, recebia risos imaginários como companhia, vindos da angústia, da raiva por ser feia, da raiva que crescia em seu coração e em sua mente.
Ao chegar em seu quarto, as paredes pareciam movimentar-se e cada vez mais se sentia sufocar. A brancura das paredes a sufocavam e começou a ouvir vozes, cada vez mais insistentes, que, pelo menos, silenciavam os risos dos outros. Noite adentro, permanecia sentada em sua cama, a murmurar uma frase numa língua estranha, mas repetida incessantemente por aquelas vozes: Occidere eos! Occidere eos! Descobriu que era latim, em uma aula, quando viu um texto sobre uma espécie de planta e o professor leu o nome em voz alta.
Já era meados de julho, fazia frio, chovia e o uivo vindo das janelas denunciava que, fora daquelas paredes, ventava. Alguns acadêmicos ficaram de recuperação: sete pessoas. Dentre os que ali estavam, a pobre moça, mas nem ao menos entendia o que estava fazendo, pois há muito tempo que não prestava mais atenção nas aulas. Os outros seis eram justamente aqueles que riam de tudo, inclusive as risadas abafadas que ela ouvia durante o semestre.
O professor entrou na sala, mas logo precisou sair, pois foi chamado por outro aluno no corredor. Quando voltou, encontrou os alunos rindo, ela em silêncio, mas não estranhou, pois, aquela moça sempre se mostrava tímida e centrada. Lembrou-se que, naquela idade, ele também era do grupo dos quietos, tranquilos e envergonhados. Começou a falar de como tinha organizado a prova e entregou-a aos alunos. No entanto, percebeu que uma das questões não estava legível. Provavelmente, por não ter trocado o tonner da impressora por um novo. Então, começou a transcrevê-la no quadro branco. Ela estava sentada, sozinha e não ouvia mais a fala do professor, não conseguia erguer o olhar, seu cérebro parecia querer arrebentar-lhe o crânio e explodir, manchando de vermelho aquelas paredes brancas, insuportavelmente brancas. De repente, sentiu uma força surreal, pegou a tesoura que tinha no estojo cor de rosa, e com uma agilidade oriunda da raiva que corria pelas veias daquele corpo cada vez mais debilitado, levantou-se.
O professor virou-se com o barulho e, com as costas empurrando o quadro contra a parede, ficou estarrecido, tomado pelo pânico, não acreditando no que seus olhos viam, sentindo gotas de sangue que espirravam em seu rosto. Via aquela aluna com o rosto em chamas atravessar a sala e, com destreza, perfurar os olhos dos colegas, cortar-lhes o rosto. E ria, ria e parecia dançar! Sentia sua coluna organizar os ossos e sentia-se a mais bela entre todas. Gritava: - Occidere eos! Enquanto suas mãos marcavam de vermelho as paredes brancas, o sangue pintava-lhe os lábios, dava-lhe novas energias, num turbilhão delirante. Não ouvia mais os risos, seus ouvidos não doíam mais, sentia-se linda. Ao fim, acercou-se da porta, olhou para o professor, deu-lhe um sorriso enigmático. O professor quase não respirava, olhava para a porta e para aquele obstáculo que impedia sua passagem. Sentiu um arrepio tomar-lhe conta do seu corpo.
Com os olhos fixos no professor, deu passos suaves para trás, encostando suas costas no parapeito do corredor. Abriu os braços e caiu do último andar do bloco A. Sentiu que seu corpo cortava o ar, sentiu a face gelar-se ao encontro com o piso frio, extremamente frio, os olhos a perder o brilho. Estava cercada de pessoas, não se sentia só. O saguão coloria-se de um vermelho vivo com o fluido da vida a escapar-lhe do corpo.


Essa história aconteceu de verdade com uma aluna da UFFS e por meses a mídia cobriu os acontecimentos. Todos comentavam a cena horrível que foi pintada naquela sala de paredes brancas. Renderam-se homenagens aos mortos. Pessoas, flores, velas, cartazes criavam um altar improvisado na entrada da universidade. As flores apodreciam e exalavam um odor de morte que impregnava as narinas, dia após dia e noite após noite. Devido aos acontecimentos, antecipou-se o fim do semestre. Quando as aulas recomeçaram, as paredes da fatídica sala já estavam lavadas e pintadas, embora, se alguém olhasse fixamente para alguns pontos do teto, ainda encontraria manchas escuras. E, em noites de vento, algumas pessoas dizem ter ouvido vozes ecoando pelos espaços vazios: mors sumus!

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