quinta-feira, 12 de outubro de 2017

OI!

                Essa história aconteceu de verdade com uma professora da UFFS.
            Fazia quatro meses que ela tinha começado a trabalhar como docente na Universidade, mas não passava um dia em que ela não ficasse suspirando de orgulho. Era filha de Realeza, nascida e criada. Quando menina, andou por todos esses lugares, nadou no Sarandi e brincou com seus amigos até não poder mais no campo de soja e milho que era o terreno onde, por incrível que pareça, hoje estão os prédios da UFFS.
            Era até engraçado olhar as matas que permaneceram ali, nos bairros em volta que vão aparecendo, e sente-se transportada para seus oito anos, numa época mais calma e mais serena. Mas agora, com vinte e nove, recém-doutora, voltar ao seu chão, depois de percorrer muitos estados e vários países em estudos e congressos, era uma consagração e até o Sol parecia que brilhava mais para ela.
            E foi longe do Sol, numa noite em que estava indo embora das aulas, que ouviu algo estranho no estacionamento atrás do Bloco dos Professores. Já seria perto das onze horas, só havia quatro carros remanescentes, os alunos todos já tinham ido no ônibus e movimentação somente a dela mesma, encaminhando-se para o carro. O barulho de seus passos nas pedras até trazia certo conforto, num ritmo calmo e contínuo. Abriu a porta e ia entrar, quando ouviu um barulho das pedras, como se três passos ligeiros fossem dados, seguido por uma voz feliz que disse: “Oi!”.
            Virou-se, mas não viu ninguém. Até deu a volta no carro, podia ser uma criança perdida (a voz parecia ser infantil), mas nada. Só estava ela no estacionamento mal iluminado. Fechou-se no carro, não conseguiu conter um arrepio, deu a partida e saiu espalhando as pedras.
            No dia seguinte, não mencionou o fato. Devia ser imaginação sua, ou então uma lufada de vento vinda de lugar nenhum, pois havia assobios que escapavam das frestas das janelas e brisas fortes que passavam naquele terreno descampado. Convenceu-se disso, mas, chegou cedo para deixar o carro o mais próximo possível e, depois das aulas da segunda noite, ficou na porta do Bloco à espera que mais alguém viesse, para irem juntos ao estacionamento.
            Foram apenas alguns minutos até o secretário sair. Trocaram os comentários triviais e despediram-se. Ele estacionou alguns metros adiante. Quando ela abriu a porta, novamente três passos ligeiros, seguidos do “Oi!” animado. Ela se virou assustada, o secretário estava longe dela, mas mesmo assim a professora perguntou se ele tinha dito alguma coisa. Fez que não com a cabeça e acenou um tchau. Ela também e entrou no carro.
            A cena se repetiu durante duas semanas. Ela tentava ir em grupo, mas bastava um instante que ficasse sozinha, logo antes de entrar no carro, para os passos e o “Oi!” se insinuarem. Não conseguia mais dormir direito. Ir trabalhar passou a ser uma tortura. Terminava as aulas antes, corria para o carro e, quando chegava em casa, chorava.
            Os colegas perguntavam o que estava acontecendo, mas ela não dizia, não podia dizer. Como explicar uma coisa que ninguém acreditaria e todos achariam loucura? A situação chegava ao seu limite: ou abandonaria tudo aquilo pelo que lutara, ou enfrentaria a voz, os passos e a escuridão.
            Na noite que se seguiu a essa resolução, ela andou com passos firmes pelo estacionamento. Olhou a luz no alto do poste central, e parou diante de seu carro. Respirou fundo três vezes, na quarta vez, os passos vieram e o “Oi!” soou. Ela, enchendo-se de uma coragem desconhecida, respondeu: “Oi. Quem é você?”
            A resposta veio num sussurro: era um nome feminino. Era o nome de uma amiga sua, da época de infância, que nunca mais tinha visto. Lembrou-se de que, logo que chegou a Realeza, procurou por essa menina, mas ninguém sabia dela. Alguns diziam que, quando criança, tinha sido raptada, outros que fugiu de casa, outros ainda, mais macabros, que tinha sido morta no meio do vasto campo de milho e soja, onde hoje é a UFFS, e seu corpo foi enterrado em lugar incerto.
            A professora pensou tudo isso, não de modo ordenado, mas numa corrente incessante de imagens desconexas. Não sabia o que fazer, ali imóvel, sentindo um ar pesado que quase se podia engolir. Piscando muito os olhos, enxugou uma gota do rosto – lágrima, suor, quem sabe? – e perguntou o que a menina queria. A resposta foi simples e direta: “Brincar”.
            O grito que se seguiu foi ouvido até no Restaurante Universitário. Todos que ainda estava na UFFS correram ao estacionamento, e viram a professora deitada nas pedras, com os olhos estáticos, encarando o céu noturno e a luz do poste central.

            Essa história aconteceu de verdade com uma professora da UFFS.
            Ela teve de ser afastada, recebendo uma aposentadoria por invalidez, e hoje está sob cuidados médicos numa clínica de recuperação em outro estado. Sempre que alguém menciona o fato dela ser professora, ou ter vindo de Realeza, ela começa a se debater, gritando e chorando. Quanto à voz, ela nunca mais foi ouvida. Embora alguns professores tenham escutado os três passos ligeiros, não há nenhuma saudação. Talvez ela seja tímida...


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